terça-feira, 31 de julho de 2007

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quarta-feira, 25 de julho de 2007

Índice

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1. Otto Maria Carpaux - "A idéia de universidade e as idéias da classe média"

Ensaio do livro A Cinza do Purgatório, incluído nos Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux

2. Panorama da Filosofia francesa contemporânea (parte II) e "Antologia sonora do pensamento francês (CD's 3 e 4)

Continuamos, com tradução nossa, a conferência "Panorama de la philosophie française contemporaine", de Alain Badiou, proferida na Biblioteca Nacional, em Buenos Aires. Essa conferência serve de prefácio à coleção "Anthologie Sonore de la pensée française par les philosophes du XXème siècle". Apresentamos agora os CD's 3 e 4.

3. Jorge Mautner - Bilhete do Kaos (Parte III)

sábado, 28 de março de 1964

BOSSA NOVA: durante muito tempo fui contra. Fui contra, simplesmente, porque era muito bonita, muito bonita demais para mim que não vivo em Ipanema, não tenho carro e sou um mitólogo trágico. Dentro de minha terminologia nietzcheana, bossa nova é muito apolínea, muito doce, muito rococó, muito boazinha, muito açúcar, muito keep-smiling, muito música de estudante sem vivência, muito letra de menino comportado, muito cristianismo, muito boa vontade. Enfim, bossa nova é o anti-eu e o que faço.


4. Recomendamos

- Biblioteca Digital Camões
- Biblioteca Digital da UNICAMP

Otto Maria Carpeaux - A idéia de universidade e as idéias das classes médias



A idéia de universidade e as idéias das classes médias
Otto Maria Carpeaux
Ensaio do livro A Cinza do Purgatório,
incluído nos Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux


Jamais esquecerei o dia em que entrei pela primeira vez, com toda a ingenuidade dos meus dezoito anos, no solene recinto da Universidade da minha cidade natal. Um pórtico silencioso. Nas paredes viam-se os bustos dos professores que ali estudaram e ensinaram; no busto de um helenista lia-se a inscrição: "Ele acendeu e transmitiu a flâmula sagrada"; e no busto de um astrônomo: "O princípio que traz o seu nome ilumina-nos os espaços celestes." No meio do pátio, num pequeno jardim, sob o ameno sol de outono, erguia-se uma estátua de mulher nua, com olhos enigmáticos: a deusa da sabedoria. Silêncio. Não esquecerei nunca.

A decepção foi muito grande. Via a biblioteca coberta de poeira, os auditórios barulhentos, estupidez e cinismo em cima e em baixo das cadeiras dos professores, exames fáceis e fraudulentos, brutalidades de bandos que gritavam os imbecis slogans políticos do dia, e que se chamavam "acadêmicos".

A última vez que passei perto deste "templo das Musas", o edifício estava fechado; os estudantes haviam-se juntado a uma imensa manifestação popular. Sabia muito bem o que isso significava para mim: um adeus para sempre. Olhando pelas frestas das portas monumentais — estávamos na primavera — via sob a luz branda do sol os pórticos, as velhas pedras, o jardim, e a deusa nua, tendo nos lábios o sorriso enigmático da morte. E reconheci um fim definitivo.

Por toda parte, as universidades são doentes, senão moribundas, e isto é grande coisa. Os iniciados bem sabem que não é esta uma questão para os pedagogos especializados. Das universidades depende a vida espiritual das nações. O fim das universidades seria um fim definitivo. O abismo entre o progresso material e a cultura espiritual aumenta de dia para dia, e as armas desse progresso nas mãos dos bárbaros é fato que clama aos céus. Os edifícios das universidades resistem ainda, e neles trabalha-se muito, demais, às vezes, mas o edifício do espírito, esta catedral invisível, está ameaçado de cair em ruínas. Em tempos mais felizes a sueca Ellen Key dizia com sutileza: "Cultura é o que nos resta depois de termos esquecido tudo quanto aprendemos." E, deste modo, somos riquíssimos de saber e mendigos de cultura. Hoje em dia Herbert George Wells pode dizer: "We are entered in a race between education and catastrophe." "Entramos numa corrida entre educação e catástrofe." Aí está a questão da Universidade.

Quem é o culpado? Evidentemente, é inadmissível simplificar uma discussão de tal envergadura. Acusa-se o Estado por ter-se intrometido, e acusa-se o Estado por não se intrometer. Acusam-se os professores por mergulharem nos ensinos profissionais e descuidarem-se da ciência desinteressada, e acusam-se os professores por mergulharem na ciência pura sem saberem ensinar. Aqui, queixam-se de as universidades não fornecerem elites, de que a nação tem necessidade; ali, queixam-se de que as universidades fornecem elites demais, um proletariado intelectual. Abundam os remédios propostos. Desejam salvar as universidades pela separação entre as instituições puramente científicas e os institutos de ensino, o que agravaria o problema em vez de o resolver: a ciência seria, assim, afastada da vida, e o ensino entregue à rotina. Falham, igualmente, as tentativas mais bem pensadas de curar a doença infundindo uma nova crença ou uma velha fé: teremos os mesmos estudantes, os mesmos bacharéis, os mesmos doutores que antes, e as suas boas crenças não resolverão a doença da Universidade. Porque não cabe à Universidade formar crentes nem sequer sugerir convicções, mas dar ao estudante capacidade para escolher a sua convicção. Já abundam os homens cegamente convictos, muito "práticos", "úteis" para os serviços do Estado, da Igreja, dos partidos e das empresas comerciais. Pode ser que todas essas instituições lamentem, em breve, a abundância de homens convictos e a falta de homens livres. Então, acusar-se-á amargamente o utilitarismo das universidades modernas. O utilitarismo é o inimigo mortal da Universidade.

Mas o que quer dizer "prático", "útil"? A resposta não é tão simples. Por felicidade os poderosos deste mundo introduziram um novo ponto de vista, ao qual julgo que devemos algumas perspectivas novas.

Para a mentalidade média do nosso tempo a utilidade das ciências é determinada segundo as aplicações práticas: a física e a química, que nos forneceram a luz elétrica e os gases asfixiantes, são as ciências úteis; a história e a filosofia, que não nos fornecem nada, são ciências "inúteis". Apelo desta sentença para a sabedoria de certos homens práticos, que disso entendem muito bem. Certos regimes, ditos totalitários, acharam indispensável regular pela força o estudo das ciências, cujas conseqüências práticas poderiam abalar estes regimes. Ora, que vemos nós, com surpresa? Estes regimes não se ocupam, absolutamente, com as ciências "práticas", a física e a química, que continuam bem tranqüilas. Mas as ciências totalmente inúteis, a história, a filosofia, os estudos literários, são justamente as favoritas dos regimes totalitários, que as abraçam até sufocá-las. É digno de nota.

Mas o que é ainda mais notável é uma certa coincidência. Sabemos que a Universidade, Universitas Litterarum, é uma criação da Idade Média. Ora, os ditos regimes não se ocupam com as ciências naturais, que a Idade Média conhecia pouco, e que se juntaram mais tarde à Universidade. Tratam somente das "velhas" ciências, das Litterae, que na Idade Média já eram conhecidas, e que formam a verdadeira alma da Universidade. Está claro. Foram justamente estas Litterae que formaram os caracteres das nações; e aquele que desejar transformar uma nação deverá transformá-las integralmente. Eles sabem o que é uma universidade.

A história das universidades é a história espiritual das nações. A França medieval é a Sorbonne, cujo enfraquecimento coincide com a fundação renascentista do Collège de France, e cujo prolongamento moderno é a Ecole Normale Supérieure. A Inglaterra, mais conservadora, é sempre Oxford e Cambridge. A Alemanha luterana é Wittemberg e Iena; a Alemanha moderna é Bonn e Berlim. As velhas universidades são de utilidade muito reduzida. Elas não fornecem homens práticos; formam o tipo ideal da nação: o lettré, o gentleman, o Gebildeter. Elas formam os homens que substituem, nos tempos modernos, o clero das universidades medievais. Elas formam os clercs.

As universidades americanas têm a mesma origem. As velhas universidades da América Latina — Lima, México, Bogotá, Córdova — são fundações da Coroa de Espanha; mas foram, desde o início, confiadas aos frades, e já a primeira cédula de fundação, a ordem real do imperador Carlos V, de 21 de setembro de 1551, dá claramente a entender o sentimento da responsabilidade perante o espírito, o espírito desinteressado da Universidade medieval: "Para servir a Deus, Nosso Senhor, e ao bem público de nossos reinos, convém que nossos vassalos, súditos e naturais tenham Universidades e Estudos Gerais em que sejam instruídos e titulados em todas as ciências e faculdades, e pelo muito amor e vontade que temos de honrar e favorecer aos de Nossas Índias, e desterrar deles as trevas da ignorância, criamos, fundamos e constituímos na cidade de Lima dos reinos do Peru, e na cidade de México da Nova Espanha, Universidades e Estudos Gerais." Nada mais eloqüente, admirável, do que semelhantes termos haverem sido empregados quando os puritanos fundaram, em 1636, a primeira universidade da América inglesa, a de Harvard: "After God had carried us safe to New England, and we builded our houses and settled the Civil Government; one of the next things we looked after was to advance Learning and perpetuate it to Posterity, dreading to leave an illiterate Ministery to the Churches, when our present Ministers shall lie in the dust." (New England’s First Fruits, 1643.) ("Depois que Deus nos tinha seguramente conduzido a Nova-Inglaterra, e que construímos as nossas casas e estabelecemos um governo civil, uma das nossas primeiras ocupações foi estimular o ensino e perpertuá-lo para a posteridade, com receio de deixar às igrejas um clero iletrado quando os nossos clérigos atuais jazerem em pó."

O que resta destas Universitates Litterarum? O nome. Já não formam lettrés, nem gentlemen, nem Gebildeter; formam médicos, advogados, professores. As universidades tornaram-se lugares de investigações científicas; e é um romantismo utilitário que vem muni-las das asas do progresso. Não há mais "clercs", só há estudantes.

Quem é o culpado? Ainda uma vez apelo para aqueles que disso entendem. Por toda parte onde há aqueles regimes os estudantes estão nas vanguardas da violência. Não é um acaso. Ouso responder: os estudantes são os culpados.

Há duas espécies de estudantes: chamá-las-emos os "ricos" e os "pobres", sublinhando que há pobres entre os "ricos" e ricos entre os "pobres"; são apenas duas expressões cômodas para abraçar uma generalização inevitável. Os estudantes "pobres" são aqueles que estudam "para a manteiga e para o pão"; estudam para se assegurarem um melhor sucesso na luta pela vida. Seria cruel e estúpido censurá-los. Antes, devemos admirá-los, em virtude dos sacrifícios, muitas vezes imensos, feitos por eles e seus pais para melhorar um futuro incerto e tornar a existência mais digna. Todavia, importa não se dissimularem os graves inconvenientes. Estudantes "pobres", há muitos deles: vivem embaraçados pela miséria, pelas ocupações acessórias para ganhar a vida; sobretudo têm pressa de terminar os estudos. Junte-se a isto a benevolência, plenamente justificável, que os examinadores lhes devem como recompensa dos seus esforços. Em suma, o nível baixa sensivelmente. O nível baixa, dizemos, até o nível dos estudantes "ricos". São estes os que têm necessidade de um grau acadêmico, porque o pai tem um, porque isto dá certa consideração na sociedade ou para adornar fortuna um pouco recente. Entre os estudantes "ricos" existem os pobres que desejam manter penosamente o standard de uma família em decadência, o que é, aliás, muito louvável. Existem outros verdadeiramente ricos, que não têm necessidade de estudar, mas que através dos estudos testemunham grande respeito às ciências; e estas, por sua vez, precisam deles, para subsistir materialmente. Em todo caso, os seus estudos não são de necessidade absoluta; eles não estudam mais do que o necessário, o indispensável para passar nos exames; os esforços ulteriores parecem-lhes ridículos. E são eles que, pela sua situação social, determinam o nível geral. E esse nível é a morte da Universidade.

Queixam-se de que as universidades já não fornecem elites. Sim, mas em compensação fornecem verdadeiras massas, porque as ciências modernas e suas investigações têm menos necessidade de cérebros que de batalhões de estudantes; e para isto eles satisfazem. A inteligência que é precisa para estudar uma profissão, mesmo acadêmica, não é tão grande como os leigos imaginam. Há vários séculos um sábio inglês, o cônego dr. Copleston, fellow do Ariel College, em Oxford, predizia: "Ainda que a ciência seja favorecida por essas concentrações de inteligência a seu serviço, os homens que se encerram nas especializações têm a inteligência em regresso." (Citado pelo cardeal Newman, The idea of a university, p. 72). É o regredir de uma elite à condição de massa ornada de títulos acadêmicos.

É preciso que se digam, aqui, algumas verdades muito impopulares e muito desagradáveis. Existe Inteligência e existem "intelectuais". Intelectuais são os médicos, os advogados, os funcionários superiores de toda espécie, os especialistas científicos de toda sorte. Mas deve-se dizer que somente uma parte desses "intelectuais" pertence à Inteligência, que é, por seu lado, o resto dos "clercs", da elite de outrora. Sejamos sinceros: podemos ser bom médico, bom advogado, bom professor, e ter o espírito preso aos limites da profissão; e sabemos que o grau acadêmico nem sequer é sempre a garantia de boas qualidades profissionais. Mas ele confere sempre uma autoridade social. José Ortega y Gasset caracterizou essa nova espécie de intelectuais, violentamente, mas sinceramente: "Nuevo bárbaro, retrasado com respecto a su época, arcaico y primitivo en comparación con la terrible actualidad de sus problemas. Este nuevo bárbaro es principalmente el profesional más sabio que nunca, pero más inculto también — el ingeniero, el médico, el abogado, el científico." (Misión de la Universidad, Obras, p. 1289).

O fato central da nossa época é a violência generalizada a todos os setores da vida pública, a violência que pretende substituir o espírito no seu papel guiador das massas. Dessas massas que os pensadores políticos muitas vezes confundem com o proletariado econômico. Sim, mas o espírito proletário, o espírito da reação violenta contra certas condições econômicas e sociais, não está exclusivamente ligado às massas obreiras; participam dele todas as "massas", como fenômenos sociológicos, e a massa dos intelectuais também. É o fato central da nossa época: as classes médias, mesmo antes de serem proletarizadas, mesmo justamente para evitar a ameaça da proletarização, transformam-se em massas proletárias. E esta proletarização interior é um fenômeno da educação. Chama-se "classes médias" o problema central da nossa época. O livro mais bem documentado que conheço sobre o fascismo, Fascisme et grand capital, de Daniel Guérin, apresenta a tese de que o fascismo é a última expressão do grande capitalismo. Tese errônea. Provando irrefutavelmente que o grande capital se serviu do fascismo para bater o movimento trabalhista, Guérin esquece-se de concluir que o instrumento se mostrou, enfim, mais forte do que o mestre, e que os operários e os capitalistas perderam, juntos, a liberdade de movimento, pela ação deste inimigo de ambos — as classes médias. Fato fundamental do nosso tempo: o fascismo propaga-se e vence através das classes médias, das quais é a expressão triunfal.

O fascismo foi impossível na Rússia. É também um fato fundamental que a Rússia não conheceu, não teve uma classe média. Ora, seguindo a corrente da época, o bolchevismo criou uma classe média. A burocracia soviética, os stakhanovistas e outras camadas privilegiadas do operariado, não são outra coisa senão uma nova classe média. Considerando, nos outros países, a ascensão de camadas igualmente novas, que o século XIX ainda não conhecia, verdadeiros exércitos de empregados privados, de funcionários públicos, de pequenos empresários, todos formados num regime de ensino secundário ou superior muito facilitado, essas massas de homens, todos mais ou menos educados, essas multidões de "pequenos intelectuais"; considerando essas multidões de homens novos, nem capitalistas nem trabalhistas, que Karl Marx não podia prever, deve-se precisar o pensamento: o fascismo e o bolchevismo têm o lado comum de serem expressões das novas classes médias. E a ideologia que permite explicar o espírito das novas classes médias é a ideologia pequeno-burguesa, violentamente revolucionária e anti-intelectualista.

Explica-se, por isso, que Georges Sorel, o pai espiritual comum do fascismo e do bolchevismo, Georges Sorel, o ideólogo da violência, seja um homem profundamente pequeno-burguês, representante típico das classes médias francesas, preocupado com a decadência das "autoridades sociais", que ele concebeu fielmente no espírito conservador de Le Play; preocupado, enfim, com a decadência vital da raça latina, pela qual ele responsabiliza violentamente a Inteligência; ao espírito ele prefere a vitalização pelos instintos bárbaros da massa.

Fica-se a admirar que Sorel fale em decadência, na França dos Taine e Bergson, dos Flaubert e Proust, dos Mallarmé e Claudel, dos Degas e Cézanne, dos Rodin e Debussy, dos Pasteur e Henri Poincaré, numa das épocas mais magníficas do espírito francês. Mas é por isso mesmo. Sorel é violentamente anti-intelectualista. Vê no espírito e suas obras o grande obstáculo da volta ao primitivo. Neste ponto, Sorel parece sobretudo "moderno", contemporâneo de nós outros. É a hostilidade ao espírito que liga Sorel diretamente às novas classes médias.

No pensador revolucionário Sorel não se viu o conservador, o representante das classes médias. O mal-entendido correspondente não viu nas novas classes médias as possibilidades revolucionárias. Durante um século, o século XIX, esqueceu-se que a classe média fizera a Grande Revolução. Via-se na classe média a classe essencialmente conservadora, a portadora mesma das tradições humanísticas, e ela o era enquanto os princípios consolidados da Revolução Francesa abrigavam a classe média contra as ameaças do grande capitalismo e do movimento socialista. Isto, porém, acabou. Chegou o dia de uma nova classe média, pronta a vencer por uma nova revolução violenta ou, como na Rússia, triunfar contra um regime obsoleto. Foi Sorel quem emprestou às novas classes médias a ideologia revolucionária.

Poder-se-ia acreditar que os grandes obstáculos dessa revolução fossem os capitalistas e os trabalhadores, ou, na Rússia, um regime milenário e eclesiasticamente consolidado. Engano. Vimos a fraqueza incrível do regime tzarista, a derrota fácil dos socialistas, o suicídio dos capitalistas. O verdadeiro obstáculo — e Sorel o previra bem — era a Inteligência. É ela que merece as diatribes mais cruéis dos chefes e dos caudilhos. Para a vitória final, precisa-se acabar com a Inteligência.

Como? Não é a classe média o principal agente dos movimentos espirituais? Sim, é, ou, melhor, foi. O século XIX, o século liberal, abre a todos todas as possibilidades. A educação superior é o caminho da ascensão. A preeminência da classe média no século XIX baseia-se na sua cultura universitária. Mas o século XX acaba com isso. O grande capitalismo precisa mais de exércitos de pequenos empregados do que de self-made men; as profissões liberais estão superlotadas; o movimento socialista repele os que resistem à proletarização e suas humilhações e privações. Privada dos privilégios da Inteligência, a classe média quebra furiosamente o instrumento, como uma criança quebra o brinquedo insubmisso. É uma criança, essa nova classe média; mas uma criança perigosa, cheia dos ressentimentos dos déclassés, furiosa contra os livros que já não sabe ler e cujas lições já não garantem a ascensão social. Está madura para a violência.

A violência é o fenômeno "espiritual" central das novas classes médias e da nossa época; significa a determinação de empregar todas as armas, todas as que o esforço do espírito criou, para conseguir um fim material: a salvação social da classe. Não se admitem outros fins. Ridiculizam ou anatematizam todos os esforços independentes, desinteressados, do espírito. Admiram a especialização útil do "intelectual de profissão", e banem o humanismo do "professor". A violência anti-intelectualista das novas classes médias é, afinal, uma falta de educação, ou, antes, o fruto de uma falsa educação. Fruto da falsa idéia que as classes médias formavam da Universidade: da nova Universidade, que fornece exércitos de médicos, advogados e técnicos, em vez de "clercs", de uma elite.

O problema capital do nosso tempo, o problema da elite, é, no fim das contas, um problema de pedagogia humanística. Existe mesmo, hoje, política que consiste na exterminação das elites pelas armas dos especialistas. E foi bem preparada: da diminuição das lições latinas, existe apenas um passo para a destruição dos livros e dos museus.

O resultado mais freqüente da moderna educação universitária é um decidido adeus aos livros. Mais tarde, combaterão as "línguas mortas" na escola. Enfim, declararão inútil todo o ensino secundário, com as suas idéias vagas e inúteis duma "cultura geral"; talvez toquem, com isso, no ponto nevrálgico da discussão. Todo o problema espiritual dos nossos dias é, pois, um problema de falta de educação humanística, um problema pedagógico; e todo o problema pedagógico dos nossos dias é um problema da escola específica das classes médias, da escola secundária.

Segundo o regime escolar vigente em todos os países, sem exceção, a Universidade dedica-se ao ensino profissional superior, enquanto a "cultura geral" fica reservada ao ensino secundário, aos ginásios e aos liceus. Quer dizer: o ensino da cultura geral limita-se aos jovens de dez a dezoito anos. Depois, a "cultura" termina, e a medicina e a jurisprudência começam, sem nenhuma "cultura geral". Os conhecimentos do ensino secundário empalidecem, naturalmente, com o tempo; mas ainda há coisa pior: todo esse ensino de "cultura geral" é feito ao alcance de jovens de dez a dezoito anos: a história, a filosofia, a literatura, amoldadas ad usum Delphini, e forçosamente puerilizadas. E aí fica. Nunca mais o jovem médico ou engenheiro ouve falar em história, filosofia, literatura, exceto pela imprensa ou pelo rádio, que se colocam ao alcance do espírito das grandes massas, pueris por natureza. Resultado: um espírito artificialmente preservado no estado pueril com uma formação profissional superposta. Conheço bem as numerosas exceções que felizmente existem. Mas, em geral, estas massas graduadas se distinguem dos iletrados somente por uma autoridade profissional que as torna menos úteis que perigosas. Ainda uma vez cito Ortega y Gasset: "La peculiarísima brutalidad y la agresiva estupidez con que se comporta un hombre, cuando sabe mucho de una cosa y ignora de raiz todas las demás" (O. c., p. 1291). Eles, porém, os iletrados, têm sempre razão, porque são muitos e ocupam um lugar de elite, esse "proletariado intelectual", sem dinheiro ou com ele, isso não importa. Julgam tudo, e tudo deles depende. Lêem os livros e decidem sobre os sucessos de livraria, criticam os quadros e as exposições, aplaudem e vaiam no teatro e nos concertos, dirigem as correntes das idéias políticas, e tudo isto com a autoridade que o grau acadêmico lhes confere. Em suma, desempenham o papel de elite. São osnouveaux maîtres, os señoritos arrogantes, graduados e violentos; e nós sofremos as conseqüências, amargamente, cruelmente.

"We are entered in a race between education and catastrophe."
Wells tem muita razão. Mas é de grande importância datar a desgraça. Esta catástrofe irrompeu sob o signo do progresso, e o progresso ilimitado, muito do gosto de um Wells, cavará mais profundamente o abismo. O verdadeiro caminho é a volta.

Temos mais uma vez "a disputa do medievalismo". Uma coisa fica, porém: a Universidade é uma criação da Idade Média. Todas as universidades medievais são, por princípio, instituições "clericais": elas formam os "clercs". O restabelecimento das universidades "clericais" é uma restauração de tradições.

Quatro ou cinco faculdades reunidas não constituem ainda uma universidade. Elas não criam esta "convivence of sciences, which forms a philosophical habit of mind", de que fala o cardeal Newman. Não se trata destas ciências ou daquelas profissões. Trata-se do espírito comum que as anima, do espírito filosófico, anti-utilitário, desinteressado, que as nossas universidades perderam, e que é a própria Idéia de Universidade. Derrubemos, pois, este estado de coisas. É ao ensino secundário que cabe o preparo do ensino profissional, dispensado nos hospitais e na magistratura. Em conclusão, é à Universidade que incumbe a formação do espírito da "clericatura".

Voltemos aos estudantes: o seu utilitarismo, mais perigoso que o das ciências, perdurará enquanto a freqüência das universidades for a chave para as posições de mando na sociedade. Verdadeiramente, o oposto deste utilitarismo é o desinteresse, no qual Newman via o espírito e a idéia de universidade, o espírito do clero universitário medieval que se sentia independente do mundo e somente responsável perante Deus. Sem tais padres o altar fica vazio e o culto abandonado. Poderia chegar o dia em que ninguém compreenderia mais as fórmulas nem os poemas, em que os quadros de Rembrandt seriam pedaços de tela e as partituras de Beethoven farrapos de papel; dia da barbaria, em que a história humana se transformaria, pela sucessão de desgraças, num formigueiro mal organizado. E este dia talvez já esteja mais próximo do que realmente pensamos. "Somos a última reserva, fiquemos conscientes disto." — dizia Hugo Ball. Fiquemos conscientes, "dreading to leave an illiterate Ministery to the Churches, when our present Ministers shall lie in the dust".

Panorama da filosofia francesa contemporânea (parte II) / Antologia sonora do pensamento francês pelos filósofos do século XX (CD's 3 e 4)

Continuamos, com tradução nossa, a conferência "Panorama de la philosophie française contemporaine" (leia a parte I), de Alain Badiou, proferida na Biblioteca Nacional, em Buenos Aires. Essa conferência serve de prefácio à coleção "Anthologie Sonore de la pensée française par les philosophes du XXème siècle". Apresentamos agora os CD's 3 e 4 (baixe os CD's 1 e 2).


Panorama da filosofia francesa contemporânea
Alain Badiou


A primeira operação é uma operação alemã, ou uma operação francesa sobre os filósofos alemães. De fato, toda a filosofia francesa da segunda metade do século XX é na realidade também uma discussão da herança alemã. Tivemos momentos muito importantes nessa discussão, como, por exemplo, o seminário de Kojève sobre Hegel nos anos trinta, que foi de considerável importância, sendo seguido por Lacan e que causou forte impressão sobre Lévi-Strauss. Em seguida, há a descoberta da fenomenologia pelos jovens filósofos franceses dos anos trinta e quarenta, através da leitura de Husserl e Heidegger. Sartre, por exemplo, modificou completamente sua perspectiva quando, residindo em Berlin, leu, diretamente no texto, as obras de Husserl e de Heidegger; Derrida é, primeiramente e acima de tudo, um intérprete absolutamente original do pensamento alemão. E, além disso, há Nietzsche, filósofo fundamental tanto para Foucault quanto para Deleuze. Então, nós podemos dizer que os franceses foram procurar alguma coisa na Alemanha, em Hegel, em Nietzsche, em Husserl e em Heidegger.

O que a filosofia francesa foi procurar na Alemanha? Nós podemos resumi-lo em uma frase: uma nova relação entre o conceito e a existência, que tomou diversos nomes: desconstrução, existencialismo, hermenêutica. Mas, através de todos esses nomes, vocês têm uma investigação comum, a tarefa de modificar, deslocar, a relação entre o conceito e a existência. Como a questão da filosofia francesa, depois do começo do século, era a relação entre vida e conceito, essa transformação existencial do pensamento, essa atribuição do pensamento ao seu solo vital, interessava vivamente a filosofia francesa. É o que eu chamo, para a filosofia francesa, de operação alemã: encontrar na filosofia alemã novos modos de tratar a relação entre conceito e existência. É uma operação porque essa filosofia alemã se tornou, em sua tradução francesa, o campo de batalha da filosofia francesa, algo inteiramente novo. Tivemos uma operação totalmente particular que foi, se assim posso dizer, a apropriação francesa da filosofia alemã. Essa é a primeira operação.

A segunda operação, não menos importante, diz respeito às ciências. Os filósofos franceses da segunda metade do século quiseram arrancar a ciência do estrito domínio da filosofia do conhecimento; mostrando que ela era mais vasta e mais profunda que a simples questão do conhecimento, posto que atividade produtiva, criação e não apenas reflexão ou cognição. Quiseram encontrar na ciência modelos de invenção, de transformação, para, finalmente, inscrever a ciência não na revelação dos fenômenos, na sua organização, mas como exemplo de atividade do pensamento e atividade criadora comparável à atividade artística. A operação a propósito da ciência consistiu em deslocar a ciência do campo do conhecimento ao campo da criação e, finalmente, em aproximá-la progressivamente da atividade artística. Esse processo encontra sua realização em Deleuze, que compara de maneira muito sutil e íntima as criações científicas e artísticas, porém muito antes já tinha se tornado uma das operações constitutivas da filosofia francesa.

A terceira operação é uma operação política. Todos os filósofos desse período quiseram criar um profundo engajamento da filosofia na questão política: Sarte, o Merleau-Ponty do pós-guerra, Foucault, Althusser, Deleuze, todos eles foram ativistas políticos. Através dessa atividade política eles buscaram uma nova relação entre o conceito e a ação. Da mesma forma como buscaram nos alemães uma nova relação entre o conceito e a existência, eles buscaram na política uma nova relação entre o conceito e a ação, particularmente a ação coletiva. Esse desejo fundamental de engajamento da filosofia nas situações políticas modificou a relação entre o conceito e ação.

Enfim, a quarta operação, eu chamarei uma operação moderna: modernizar a filosofia. Antes mesmo que falássemos todos os dias em modernizar a ação governamental (hoje é preciso tudo modernizar, o que muitas vezes quer dizer tudo destruir), houve entre os filósofos franceses um profundo desejo de modernidade. Isso queria dizer seguir de perto as transformações artísticas, culturais, sociais e as transformações nos costumes. Houve um interesse filosófico muito forte pela pintura não-figurativa, pela nova música (nouvelle musique), pelo teatro, pelo romance policial, pelo jazz, pelo cinema. Houve uma vontade de aproximar a filosofia do que havia de mais denso no mundo moderno. Houve também um interesse muito forte pela sexualidade, pelos novos estilos de vida. E, através de tudo isso, a filosofia buscava uma nova relação entre o conceito e o movimento das formas: as formas artísticas, sociais e da vida. Essa modernização era a investigação de uma nova maneira de aproximar a filosofia da criação das formas.

Esse momento filosófico francês fez então uma nova apropriação da criação alemã, uma visão criadora da ciência, uma radicalização política, uma investigação das novas formas de arte e da vida. E, através de tudo isso, tratava-se de uma nova posição do conceito, uma nova disposição do conceito, um deslocamento da relação do conceito ao seu exterior: nova abordagem em relação à existência, ao pensamento, à ação e ao movimento das formas. É essa novidade da relação entre conceito filosófico e exterior desse conceito que constituiu a novidade geral da filosofia francesa no século XX.

A questão das formas, a busca por uma intimidade da filosofia com a criação das formas é muito importante. Evidentemente, ela introduziu a questão da forma da própria filosofia: não podemos deslocar o conceito sem inverter as novas formas filosóficas. Era preciso transformar a língua da filosofia, não apenas criar novos conceitos, daí o surgimento de uma aproximação singular da filosofia à literatura, que é uma das características mais impressionantes da filosofia francesa no século XX. Podemos dizer que essa é uma longa história francesa – lembrando que, no século XVIII, aqueles que chamávamos filósofos eram todos grandes escritores: Voltaire, Rousseau ou Diderot, que são clássicos de nossa literatura e, portanto, ancestrais dessa questão. Existem autores por toda a França que nós não sabemos se eles pertencem à literatura ou à filosofia: Pascal, por exemplo, que é certamente um dos maiores escritores de nossa história literária e, certamente, um dos nossos mais profundos pensadores.

No século XX, Alain, um filósofo de aparência inteiramente clássica, no decorrer dos anos trinta/quarenta, um filósofo não-revolucionário e que não pertence a esse momento de que falo, está muito próximo da literatura; para ele a escrita é essencial, produziu numerosos comentários de romances – seus comentários sobre Balzac são muito interessantes –, bem como da poesia francesa contemporânea, notadamente de Valéry. Então, mesmo entre as figuras clássicas da filosofia francesa do século XX, nós notamos essa ligação muito estreita entre filosofia e literatura. Os surrealistas também desempenharam um papel importante

(Continua...)

"Anthologie sonore de la pensée française"


CD 03:

Faixa 01: "Splendeurs de l ecole d'ispahan", por Alain Corbin
Faixa 02: "Artifice et societe dans l'oeuvre de Hume", por Gilles Deleuze
Faixa 03: "Le dieu de Spinoza", por Gilles Deleuze
Faixa 04: "Le travail de l affect dans l ethique de Spinoza", por Gilles Deleuze
Faixa 05: "Bernard Groethuysen une amitie philisophique", por Jean-Toussaint Desanti
Faixa 06: "Comment je philosophe?", por Jean-Toussaint Desanti
Faixa 07: "A propos de l'histoire de la folie", por Michel Foucault

Baixe o CD 03

CD 04:

Faixa 01: "Raymond roussel ecrivain", por Michel Foucault
Faixa 02: "Le corps: lieu d'utopies", por Michel Foucault
Faixa 03: "L'amour de Petrarque", por Étienne Gilson
Faixa 04: "Sur la philosophie d'Henri Bergson", por Vladimir Jankélévitch
Faixa 05: "La place de Saint Anselme dans la philosophie occidentale", por Alexandre Koyré

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Jorge Mautner - Bilhete do Kaos (Parte III)




sábado, 21 de março de 1964

1 TUDO é novo no Brasil. Tudo. Até as esquerdas. Quero dizer: em expressão de massa. Exceções individuais sempre existiram. É como em tudo o mais: estamos atrasados muito tempo. Será às vezes ridículo de minha parte sonhar com um movimento de esquerda para o Brasil como o da Itália ou o da França? Acho que o Brasil tem condições para tanto. Um país cujo processo histórico se verifique pacificamente. Haverá lugar já para um alto nível cultural e existencial na revolução brasileira? Meus esforços de encontrar uma ideologia própria dentro do marxismo (na parte da condição humana e da arte) tem sido atacada pelo maior coro de histéricos sectários visto até hoje.

2 É COMO se eu fosse ovelha negra. Quisling e criminoso. Como são ignorantes estes Catões da província! Não sabem que prejudicam mais a revolução do que a auxiliam? Eu quero impedir que uma nova Idade Média stalinista ou fascista caia sobre o mundo. Sobre o Brasil. Lutarei dentro da esquerda pelos seus altos objetivos.

3 ÀS CARTAS de apoio que recebi, meu sincero e total agradecimento. Cartas de operários, estudantes e gente simplesmente. Cartas cheias de calor humano. Muito obrigado, pois elas me dão forças para lutar. Depois de ouvir os histéricos, é bom ouvir uma voz humana, que fale com o coração e não com a bílis ou com a frustração. E para você, leitora que está tão triste porque já não é mais passarinho, eis o que digo: a vida está em você. As fontes, os rios, o céu, os infernos e os opostos, estão todinhos em você. É só chegar ali no fundo sem medo. Sem medo de ninguém e de nenhuma voz a não ser a tua. E o céu e as asas do passarinho que você foi voltarão a você, porque elas jamais te abandonaram, foram esquecidas por você durante algum tempo. Mas o que é teu, será sempre teu. Isto ninguém te arrancará. E você é poeta, e os poetas têm crises necessárias de melancolia. Você bebe a vida da própria vida. Tomando um simples copo de água. Olhando um trem. Ao lutar pela coletividade apesar dos fanáticos que dizem que também lutam por ela mas o que querem na realidade é o sangue, a vingança, a projeção dos seus complexos. Você tem a vida. Você é a vida! E muito obrigado pelo apoio.

quarta-feira, 25 de março de 1964

1 ELE É FORTE, alto, lindo. Tem a pele bronzeada pelo sol do Guarujá. Músculos nascidos dos halteres, da natação, do pólo aquático. Tem um sobrenome pomposo do qual muito se orgulha. Sorri e acha a vida uma maravilha. Seu único pavor: os comunistas. Os comunistas são o único espectro da sua vida. E comunistas são as reformas para ele. Seu olhar puro, verde, ingênuo, se torna negro, violento, cheio de cólera, quando pensa nos "comunas". Jura que os "comunas" não hão de deflorar sua irmã, nem despedaçar os móveis de sua linda casa do Morumbi, e mostrou-me uma pistola alemã Luger que guarda no porta-luvas do seu carro-esporte Karmann-Ghia. Disse ainda que mais de vinte "comunas" morrerão na frente de sua linda mansão, abatidos por sua metralhadora especialmente adquirida para matar "comunas".

2 COMO é impressionante o número de empregadas domésticas que foram obrigadas por suas patroas a participar do desfile! Foram defender os privilégios das patroas.

3 O ESTUDANTE de direito virou-se para a mal-amada e falou: — "Pois é, nós defendemos o povo, as reformas, a senhora é rica, defende os privilé-gios". E a senhora gritou: —"Está enganado! Eu não sou rica não!" De fato, ela não era rica, era burra.

4 PARABÉNS à gloriosa classe dos estudantes, que sempre marcharão com a História e o povo! O Largo de São Francisco é o heróico Largo de São Francisco.

5 A IDADE Média pode cair sobre o mundo. Depende de nós. Está nas mãos do homem fazer as coisas. Senhor guarda-civil, meu amigo, irmão, homem do povo, você vai atirar no povo? Vamos mais uma vez lançar o apelo da luta pacífica, da marcha legal dentro da Constituição pela efetuação de um vasto e definitivo plebiscito popular. Pelo voto dos analfabetos. Pelas reformas realmente de base. Por todo o programa democrático!

6 SÃO PAULO tem um status quo social diferente das outras regiões do País. Uma frente nacional-burguesa aqui não funciona. Porque aqui a luta de classes é mais nítida. Sempre em nome da união total das forças progressistas e nacionais, democráticas e do centro, contra os golpes que a direita desesperada trama a todo vapor, de qualquer maneira. Saravá!

quinta-feira, 26 de março de 1964

1 QUANDO se descobre a contradição e se passa a aplicá-la, começamos a viver numa nova dimensão. Nosso ser dá um salto qualitativo tremendo e tornamo-nos amorais. Acima do bem e do mal nos leva a dialética. Tudo é negativo e positivo: estamos na contradição fundamental do homem: sua luta contra a natureza para efetuar a caminhada do progresso. Isto é agônico, dolorido. Mas as paixões continuam fluindo com a mesma intensidade. Como enfiar um sentido nisto tudo? Um motivo? Um porquê? Uma moral? Uma meta?

2 A CRISE do homem contemporâneo é a crise da vontade de poder. Para mim o homem será sempre romântico, no sentido denso do termo, sentido germânico.

3 ESTOU com André Breton em sua posição para com o marxismo. Revolução para que o homem se liberte em sua totalidade. Os fins jamais justificam os meios. Ievtushenko e qualquer poeta dirão isto. Poeta no duro. A não ser que antes de poeta ele seja um político trágico. Criticam-me alguns enjoados dizendo que repito coisas e que barateio minha mensagem escrita nos meus livros. Os enjoados estão errados. É preciso atingir todo mundo. É preciso que todo mundo saiba que a revolução, para ser verdadeiramente revolução, necessita da maior liberdade artística e existencial. Que o Kaos, ao lado de ser uma visão particular do mundo, é também a bandeira da liberdade artística dentro da esquerda. Irredutível serei nesta posição. Arte e ciência se equivalem. Nociva qualquer intervenção alheia, de dirigismo ou conceituação. É certo que estas coisas são sabidas mas é preciso repeti-las sempre e sempre, com dizia Sartre.

4 JÁ BASTA o fato de esta geração ainda ser vítima dos efeitos he-diondos do stalinismo. Ou a revolução é feita em estado de total pureza ou ela descambará para a sua mais terrível contradição. A revolução traz em si (como tudo) o seu contrário. E as questões são tão complexas que é difícil o julgamento. Eu nego o julgamento, em questões de arte, para a condição humana. Podemos julgar forças econômicas. Jamais o homem, porque todo trabalho é autêntico. Mesmo o traidor, o vigarista, o falso. Sei que não vão me entender e dizer que eu sou traidor, vigarista e falso.

sábado, 28 de março de 1964

1 BOSSA NOVA: durante muito tempo fui contra. Fui contra, simplesmente, porque era muito bonita, muito bonita demais para mim que não vivo em Ipanema, não tenho carro e sou um mitólogo trágico. Dentro de minha terminologia nietzcheana, bossa nova é muito apolínea, muito doce, muito rococó, muito boazinha, muito açúcar, muito keep-smiling, muito música de estudante sem vivência, muito letra de menino comportado, muito cristianismo, muito boa vontade. Enfim, bossa nova é o anti-eu e o que faço.

2 ACRESCENTE-SE o idealismo sectário político das letras participantes, reveladoras de um cristianismo otimista de um futuro florido. É o anti-eu, o anti-Dionísio. Tem mais: bossa nova é clássica, e eu procuro o afastamento. Ela é doce, mas de um romantismo que não machuca.

3 VOCÊS já viram a cara dos compositores e cantores bossa nova? Caras marcadas pelo sofrimento, rugas, expressão de máscara de tragédia grega. Aracy de Almeida, Noel Rosa, Ismael Silva. Por isto que as minhas músicas são todas dentro de uma linha de afastamento, deixam o ouvinte num vácuo e ele então tem que tomar posição, atitude. Inclusive todos os bossa nova são bondosíssimos. De uma ternura sem igual. Por outro lado são de um avanço tremendo. Eis o outro lado da contradição. Mas sempre carregarão dentro de si a marca de Ipanema, seu mar doce, sua vida amena e a ironia fácil do carioca.

4 A BOSSA NOVA, a meu ver, acabou. Transformou-se, melhor dizendo. Evoluiu para o afro e para o nordestino. Bebem agora em fontes folclóricas, uma verdadeira injeção vitalizante.

5 ANTES era a dissonância pela dissonância. Era o abstrato, o fácil sorrir ante o mar lindo de Ipanema. Era o conselho idiota: chega de saudade, conselho nascido de uma mentalidade de escoteiro ou reformista moral. Uma porcaria as letras sociais também, todas elvadas de uma falsidade hipócrita pequeno-burguesa. Um lirismo evangélico de fraternidade humana. O afro, a pesquisa folclórica, veio dar força telúrica, trágica, injeção de amargura e experiência de vida para esta superficialidade cor de rosa tão linda, tão apolínea que eu fico horas e horas ouvindo e achando o máximo, genial, bárbaro!

segunda-feira, 30 de março de 1964

1 GAROAVA. Chegou dentro do bar sofisticado e pagão um grupo de gente cheia de ginga. Era noite. Garoava e fazia frio. Entrou no bar frio uma turma quente. E quando olhei bem para quem entrava eu vi. E mal acreditei no que vi: entravam no bar gênios. Gênios da música brasileira. E foi de joelhos, em sinal de respeito, de adoração fanática, que eu ouvi com lágrimas nos olhos a voz de três criaturas tão puras, tão geniais que tudo o que de música existira antes deles ficou milênios para trás.

2 NELSON Cavaquinho, Zé Ketti, Cartola. Três nomes que eu pronuncio com vontade de chorar, de morrer, de alegria profunda por ter nascido numa terra chamada Brasil, que fez nascer estes três poetas maiores que Homero em sua simplicidade. Eles merecem uma eternidade de colunas, merecem tanta coisa que eu jamais poderei dar. Merecem tudo. Merecem as melhores gravadoras porque são a voz do povo em toda a sua malícia pura e beleza bachiana de melodia religiosa. Lembra tanto o canto-chão das cerimônias de Xangô!

3 SÃO os poetas mais puros e honestos que já conheci. Aquela voz rouca que carrega um tempo tão grande de emoção, sofrimento e alegria! "Diz que fui por aí levando um violão debaixo do braço". Meus senhores: estes três merecem estátua em praça pública. Merecem o que ninguém merece nessa terra. E a bossa nova nada fez de tão grande como agora, reconhecendo e trazendo à luz do dia estas jóias, estas maravilhas que nasceram nas noites do Rio de Janeiro, noites cheias de dor e alegria, de calor que o sol deixou de dia. Gente do morro. Eu rasgaria toda a minha obra por um samba daqueles! É difícil falar sobre a música, porque a música fala mais do que as palavras. É tanto o meu entusiasmo que, pela primeira vez, esta coluna tem continuação para eu poder falar amanhã sobre essa gente que é a gente do meu povo, que são os artistas do Brasil! Os mitólogos, os cantores, os poetas do povo, com sua ginga, sua malícia, sua pureza (com melodia bachiana aprendida sei lá onde!), seu calor que queima tudo na mensagem de amor mais formidável e revolucionária que já vi!
terça-feira, 31 de março de 1964

1 QUANDO os sambistas entraram no bar, os podres, os alienados, fizeram cara de enjôo. Eu ajoelhado, sabia o valor do presente que me era dado: ouvi a música, pela boca dos compositores! Os ratos, os coitados, os que fazem barulho porque nada mais sabem fazer, continuaram a falar enquanto Zé Ketti, Cartola e Nelson Cavaquinho cantavam. Mas a voz a força dos três era maior que a alienação, a falta de educação, cultura, brasilidade, dos cafajestes. A voz dos três lembrava o coro trágico de Dionísio. Era Brasil no verdadeiro samba social. Era a poesia emanando em toda a sua leveza e profundidade. Era o que de mais puro a massa produziu. Era a própria História gingando sob forma de samba!

2 VINÍCIUS de Morais disse: Socialismo, sim! Mas com samba! E eu acrescento: com samba de Zé Ketti, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva, Cartola e Noel!

3 FIZERAM barulho os alienados. E naquele bar eu vi o que era Brasil, poesia e História e o que alienação e nojentice. Os que falavam bobagens intelectualizadas aos grunhidos e os que cantavam poesia de morro e do povo.

4 PEDI desculpas aos três e fiz ver que São Paulo não tinha culpa. São Paulo, o túmulo do samba. Aí os três e o Franco Paulino e eu saímos para a rua e garoava. Então Nelson Cavaquinho falou para mim: — "Será que se pode cantar em rua de São Paulo?" E caía o véu de garoa prateada. Eu disse: — "Pode, a rua é de todo mundo". E então na rua, naquela noite fria, enquanto garoava, mais um samba ecoou. Mais uma vez, a noite que era fria ficou quente. O amor em forma de samba do mais puro rolou das bocas dos três gênios e a garoa que era prateada e fria ficou (eu vi) dourada e quente.

5 OS TRÊS foram embora. De repente. Num carro para o Rio de Janeiro. São Paulo foi visitada por três anjos, três demônios inesquecíveis que fazem a maior música popular, a poesia mais sincera, singela e brasileira que eu já ouvi. De joelhos.

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